A Experiência de Duas Ditaduras
Minha trajetória tem sido marcada por uma vida tranquila, sem grandes riscos ou aventuras. Nunca me arrisquei a pular de asa delta e, como torcedor do Vasco, evitei situações tensas, como assistir a um clássico contra o Flamengo no meio da torcida rival. Essa cautela, por certo, me preservou de emoções extremas e me levou a completar oitenta anos sem sequer ter quebrado um osso. No entanto, há um lado da história que não posso deixar de compartilhar: participei do início de duas ditaduras militares, um fato que poucos podem afirmar.
Em 31 de março de 1964, estava em Recife e vivenciei um clima carregado que culminou na prisão do então governador Miguel Arraes. Esse dia marcou o início da ditadura militar no Brasil, uma experiência que já detalhei em um artigo anterior publicado neste mesmo portal. Esses eventos, por si só, já seriam suficientes para histórias que contaria a meus netos. Contudo, o destino reservou outra experiência para mim, involuntariamente, é claro, em março de 1976, na Argentina.
Uma Viagem que se Tornou Histórica
Naquela época, eu e minha esposa, Celinha, estávamos em uma excursão organizada pela Soletur, uma das principais agências de turismo do Brasil, que operava na rota entre o Sul do Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai. A viagem partiu de São Paulo e incluiu visitas a capitais do Sul e cidades da Serra Gaúcha, sendo guiada por um brasileiro. Após cruzar a fronteira com o Uruguai, nosso guia foi substituído por Walter, um uruguaio da nossa faixa etária, com quem rapidamente nos aproximamos. Em meio às conversas, ele insinuou que fazia parte de um movimento clandestino, chamado Tupamaros, um grupo guerrilheiro de tendência marxista-leninista no Uruguai.
Na noite de 23 de março de 1976, deixamos Montevidéu em um navio que nos levaria a Buenos Aires através do rio da Prata. Chegamos ao amanhecer, mas fomos mantidos a bordo até o final da tarde do dia seguinte, que coincidia com o primeiro dia da ditadura que, logo após prender a presidenta Isabelita Perón, se tornaria a mais violenta da América do Sul. A partir do porto até o hotel, fomos escoltados por militares. Mesmo com as cortinas fechadas das janelas do ônibus, avistamos a presença militar em todos os cantos da cidade.
O Estado de Sítio e a Repressão
Chegando ao hotel, fomos informados sobre o estado de sítio do país e a proibição de sairmos sem autorização. Não havia como buscar ajuda, nem saber onde obter essa tal autorização. Com o comércio e os bancos fechados, e o transporte público parado, não tínhamos muito o que fazer fora do hotel. Após três dias de confinamento, finalmente tivemos permissão para sair, mas apenas algumas lojas começaram a reabrir, e os pagamentos só eram aceitos em pesos argentinos, algo que complicou ainda mais nossa situação uma vez que os bancos permaneciam fechados e não podíamos fazer câmbio.
O desespero começou a se instaurar quando a Soletur conseguiu autorização para nos enviar a Bariloche, onde as atividades estavam quase normalizadas. No aeroporto, Walter recolheu nossos documentos para o check-in, mas, de repente, foi cercado por militares fortemente armados. Em poucos minutos, ele foi levado, e um oficial se dirigiu ao grupo, perguntando por mim. Lembrei da menção aos Tupamaros e temi pelo pior. Mas o oficial apenas me entregou um envelope com os documentos e explicou que Walter havia me designado para terminar o embarque.
Um Brinde à Libertação
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Após essa situação tensa, nos dirigimos para a sala de embarque, onde aguardamos em silêncio, preocupados. Em poucas horas, chegamos a Bariloche, e, para nossa surpresa, Walter apareceu durante o jantar. Comemoramos sua libertação e soubemos que os militares o haviam prendido sem qualquer justificativa, apenas interessados em uma pasta que continha 100 mil dólares para cobrir os custos da excursão. A pasta, evidentemente, desapareceu sem deixar rastros.
Assim, vivi e testemunhei o início de uma ditadura que se propunha a erradicar a corrupção na Argentina, uma experiência que continua a ressoar em minha memória. Rio, 2025