Julgamento Histórico em Foco
No próximo dia 26 de setembro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos se prepara para julgar o Brasil em um caso que marcou a história da saúde no país. Trata-se das mortes de 96 recém-nascidos entre 1996 e 1997 na Clínica Pediátrica da Região dos Lagos (Clipel), localizada em Cabo Frio. Acusada de negligência médica, a instituição particular, que recebia recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) na época, enfrenta sérias acusações que podem resultar em condenações internacionais, quase três décadas após a tragédia.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA), apontou que o Brasil falhou na investigação das mortes, não responsabilizou os envolvidos e não tomou medidas eficazes de fiscalização sanitária. As vítimas, segundo pesquisas, teriam morrido em decorrência de infecções hospitalares evitáveis, como aquela provocada pela bactéria Klebsiella pneumoniae, após internações desnecessárias.
Revelações e Impunidade
O escândalo veio à tona em abril de 1997, quando familiares das vítimas denunciaram os crimes ao Ministério Público do Rio de Janeiro. A denúncia ganhou destaque na mídia, especialmente após uma reportagem do jornal O GLOBO, que evidenciou a elevada taxa de mortalidade na clínica — três vezes maior que a média nacional. Apesar da gravidade da situação, a clínica continuou a funcionar sem interrupções. Até o momento, nenhum responsável foi punido.
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Embora oito médicos tenham sido indiciados por homicídio culposo, todos foram absolvidos em 2003 e 2005. A CIDH enfatiza que essa falta de justiça e reparação prolongou o sofrimento das famílias afetadas. Diante disso, a CIDH recomendou ao Estado brasileiro que indenize as vítimas, ofereça assistência psicológica e reabra as investigações.
Vozes das Famílias
Uma das mães, que preferiu não se identificar, expressou sua indignação: “Somos um grupo de pais e mães denunciando o Estado por acobertar o que o próprio Ministério Público chamou de ‘açougue humano’. Agora, o Brasil se defende com uma tropa de advogados em direitos humanos, tentando justificar o injustificável.” As palavras dela refletem a dor e a frustração de tantas famílias que perderam seus filhos em circunstâncias tão lamentáveis.
Responsabilidade Governamental
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O Ministério dos Direitos Humanos do Brasil afirmou que, se houver condenação, o país terá de cumprir as determinações da Corte Interamericana, o que poderá levar a alterações nas políticas públicas de saúde e de justiça. A pasta ressaltou que as decisões do tribunal impactam diretamente as políticas internas do Brasil.
A Defesa da Clipel
Por outro lado, a clínica Clipel negou qualquer responsabilidade pelas mortes, argumentando que todos os médicos foram inocentados pela Justiça. Em um comunicado, a clínica classificou as acusações como “esdrúxulas e arbitrárias” e afirmou que a CIDH não ouviu os profissionais envolvidos no caso.
Condições Críticas e Laudos Ignorados
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Laudos da época revelaram superlotação, condições inadequadas de higiene e graves falhas de conduta da equipe médica. Há registros de que profissionais não higienizavam as mãos, não usavam máscaras e compartilhavam jalecos durante o atendimento aos pacientes. Apesar das evidências, inspeções oficiais consideraram a clínica apta.
Em resposta à situação, a então deputada estadual e sanitarista Lúcia Souto solicitou uma nova perícia, conduzida pela Fiocruz. O laudo final concluiu que o número de mortes era “anormal” e estava diretamente ligado a infecções generalizadas, identificando a presença da Klebsiella pneumoniae em mais de 50 exames.
Um Contexto Marcado por Crises
O caso da Clipel não foi um evento isolado. No final da década de 1990, diversas unidades neonatais no estado do Rio de Janeiro enfrentaram denúncias similares de superlotação e negligência. Em 1999, sete recém-nascidos faleceram no Hospital Geral de Bonsucesso devido a uma infecção hospitalar, e outros cinco morreram no Hospital Oswaldo Nazareth em um curto intervalo de 72 horas. Essas tragédias revelam um panorama alarmante que ainda ecoa na saúde pública brasileira.