Tradições em Debate
O movimento tradicionalista gaúcho, que se caracteriza por práticas culturais que englobam gastronomia, arte e vestuário, é uma manifestação presente no Rio Grande do Sul, assim como em outras partes do Sul do Brasil e em países vizinhos como Argentina, Uruguai e Paraguai. No entanto, esse movimento é alvo de críticas por, supostamente, se apropriar de símbolos de culturas indígenas.
A origem do tradicionalismo gaúcho remonta à miscigenação entre culturas nativas e imigrantes. Um estudo, publicado em abril de 2025, analisou como elementos da etnia kaingáng se inter-relacionam com a cultura gaúcha. Segundo a pesquisa realizada por historiadores da Universidade de Caxias do Sul (UCS), a apropriação dos grafismos indígenas pelo tradicionalismo gaúcho tem se intensificado ao longo dos anos. “O movimento tradicionalista tem utilizado os grafismos indígenas do Rio Grande do Sul, sufocando essa cultura e se apropriando de seus significados”, afirmam os acadêmicos Francisco Ailton Santos e Juliane Petry Panozzo Cescon.
Significado dos Grafismos
Os grafismos da etnia kaingáng são mais do que meros desenhos; eles representam a ancestralidade e a identidade do povo. Susana Kaingáng, uma das fundadoras do Instituto Kaingáng, explica que esses símbolos têm origem em uma jornada de dois irmãos gêmeos, Kamé e Kairú, que desceram de uma montanha em direções opostas.
Kamé trilhou um caminho difícil e, em sua jornada, desenvolveu força e se relacionou com animais diurnos. Por outro lado, Kairú, que escolheu a planície, estabeleceu um contato mais profundo com a noite e a lua, resultando em traços mais sutis. “Kamé simboliza a força dos guerreiros, enquanto Kairú representa o aspecto espiritual”, diz Susana. Os Kamé são gráficos com linhas abertas, enquanto os Kairú são circunscritos, refletindo suas respectivas identidades e seus papéis na sociedade, inclusive na orientação de casamentos entre as linhagens.
O Artesanato e Suas Raízes
Lenice de Oliveira Kaingáng, junto com seu marido Joceli Sales Kaingáng, leciona na Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Augusto Opé da Silva, localizada na Aldeia Kaingáng Três Soitas, em Santa Maria. Para Lenice, o grafismo é a marca de nascença dos kaingáng. Joceli ressalta que esses grafismos originaram uma vasta tradição artesanal. “A oralidade sempre foi nossa forma de comunicação, mas ao final do século 20, surgiu a necessidade de afirmar nossa identidade, em especial dos grupos Kamé e Kairú, através das pinturas. O artesanato foi a porta de entrada, e a pintura corporal também emergiu como uma manifestação importante”, explicou.
Legalidade e Direitos Autorais
Fernanda Jófej Kaingáng, advogada e Diretora Executiva do Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual, destaca que as Expressões Culturais Tradicionais (ECTs), que incluem os grafismos, são protegidas pela legislação brasileira como patrimônio cultural. No entanto, a apropriação indevida desses símbolos é uma prática comum nos adornos do tradicionalismo gaúcho, usada muitas vezes sem reconhecer seu valor e origem. A advogada critica: “Utilizar os grafismos apenas como elementos decorativos, sem respeitar seus significados, é uma ofensa aos direitos autorais e à identidade do nosso povo.”
Crítica ao Tradicionalismo Gaúcho
Joceli expressa sua profunda frustração em relação à identidade gaúcha, que, segundo ele, é construída sobre a apropriação de várias culturas. “O tradicionalismo carece de uma identidade própria, visto que os Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) surgiram apenas na década de 1980. Além dos grafismos kaingáng, outros elementos de diferentes etnias foram absorvidos para formar sua cultura”, afirmou. Ele enfatiza que é preciso dar reconhecimento aos kaingáng na identidade gaúcha, lembrando que, em 2022, o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) vetou a inclusão de figuras geométricas contínuas na vestimenta tradicionalista. “A decisão foi tomada para preservar a identidade cultural gaúcha, apesar de reconhecer a influência andina em algumas tradições.”
Desafios e Reconhecimento Cultural
Embora o MTG e suas unidades sustentem que esses padrões são de origem andina, a pesquisa da UCS revelou a presença de mais de 30 itens com grafismos indígenas em uma loja de pilchas na cidade de Caxias do Sul. Isso levanta um questionamento sobre a verdadeira representatividade e o respeito às culturas originais. A luta dos kaingáng pela valorização de sua cultura e pela proteção de seus símbolos continua, buscando um espaço justo e respeitoso na identidade gaúcha.